/ André Fontes


A INVENÇÃO DA AMNÉSIA
Achei que podia ser infeliz com a Júlia.
Ela ficava bem de pernas estendidas sob o tablier. – Olha, é a passadeira mais perigosa de Coina.
A Júlia soergueu-se no banco e olhou em frente, para a passadeira mais perigosa de Coina.
– Porque é que dizes isso? – perguntou-me.
– Mal se vê… nem há sinal…
Perpassámos a passadeira e o assunto ficou para trás.
A Júlia não gostava daquilo, das voltas de carro pelo campo. Eu gostava. Eu não cresci no campo, como a Júlia, e achava que os pinheiros de Coina não eram só pinheiros. Eram adereços de uma mentira. E a mentira estendia-se pela Nacional 10, até à Arrábida.

Os cumes de serra estavam longe, floresciam verdes e luminosos debaixo do sol. O que estava longe era mais bonito, era assim em todo o lado, mas era mais assim na Quinta do Conde.
Estrada ladeada por um Pingo Doce e por lojas rasteiras, e depois um túnel. Passámos o túnel, e a Júlia dobrou as pernas sobre o banco, e parecia prestes a dizer qualquer coisa, mas não disse.

A paisagem deve mentir, e se as lojas de Brejos de Azeitão se esgotassem numa drogaria, numa churrasqueira, numa pastelaria, numa casa de bifanas, numa pensão e numa farmácia, e se eu não pudesse ver-me noutro sítio enquanto passava por elas, a vida na Terra podia extinguirse num peido. Mas a paisagem mente, e a entrada do Tabuínhas era parecida com a da churrasqueira. O Tabuínhas era perto, e os outros bares de putas onde me imaginei com a Júlia também. O Cascata, o Topázio… A Júlia a entrar no Topázio, agarrada ao meu braço, com o cabelo rubro a chegar-lhe ao rabo, com os seus vinte e um anos empinados no rabo. Ao balcão, as putas a olharem para a Júlia, de cigarros armados nos dedos, e o chulo, o Yuri, a fixar-me do outro lado do balcão. Sentamonos numa mesa do canto. A conversa de fundo suspende-se, e impõe-se o kizomba no plasma da parede. O Yuri avança até nós, traz um avental à cintura. Diz-nos algo que é inevitavelmente abafado pelo kizomba, algo que justifica o silêncio do bar. A Júlia também não o percebe, e sinalizao com uma crispação. Mas o Yuri não diz mais nada, mantém-se imponentemente postado à nossa frente, com as putas e clientes do Topázio atrás dele e…
– António, posso mudar a música?
… e a Júlia acabou por dizer qualquer coisa e eu nunca cheguei a imaginar o que aconteceu depois.
– Já mudas. Deixa-me só ouvir isto.

O blues continuou. Tommy Johnson, Robert Johnson, um Johnson a crepitar num gramofone do Mississippi, a enlevar os carvalhos solitários à beira da estrada. O carvalhal principiava a serra, e eu estava sozinho com a Júlia. Isso era o blues. Talvez o Diabo estivesse por perto, também. De fato preto, em pleno Agosto, a pedir boleia. Porque não? Paro o carro. «Obrigado, obrigado», diz o Diabo ao entrar. Do banco de trás, suspira-me qualquer coisa. Uma proposta: a Júlia por uma vida menos blues? Sim, um sólido sim. O corpo da Júlia a pender de um carvalho, suspenso por uma corda dançante. E o Diabo, de cigarro no canto da boca, a dizer-me num sorriso: «Vamos arranjar-te uma que faz broches».
– Já posso mudar a música?

Ela queria imaginar-se a dançar, no Necropolis ou no D’Arc Room. Batom preto, choker, fishnets, Doc Martens, gajos a olhar para ela, gajos altos, de cabelo comprido e Doc Martens. Talvez eu nem fizesse parte da fantasia. É possível que não. Eu não vibrava com a rock gótico, e já tinha mandado fora o meu pin do Nietzsche.
– Queres que mude?
– Podes deixar – respondi-lhe.
– De certeza? ‘Tás com uma cara…
Sorri-lhe. Porque apesar da insolência da música, ela merecia um sorriso. A Júlia não fazia por mal. Cresceu no campo. As grinaldas das árvores não mereciam uma música especial. Uma melopeia dedicada ao Béla Lugosi, que mal fazia? Ele estava morto. A serra também, pelo menos para a Júlia. E o meu blues era para velhos. Foi o que ela disse uma vez: «Isso é pra velhos»; e dessa vez eu mudei a música. Outros tempos. Longe destes.
– Vou mostrar-te uma coisa… Conheces Cigarettes After Sex?
– Hã?
– Cigarettes After Sex, conheces?
– Sim, acho que sim…
– Ouve esta.
Ouvi.
E ouvi outras enquanto cruzámos a serra. Todas iguais. Letras sobre intimidade pós-sexual,suspiradas por cima de sintetizadores que já foram magoados antes, em melodias ondulatórias que lembravam estradas com demasiadas curvas. Erotismo de domingo à tarde: sofá, Netflix, pele oleosa, dentes por lavar, gelados, massagens às costas, sexo sem penetração, um eterno e constante minete embrulhado na palavra «baby».

Debaixo do toldo do Anicha, a Júlia olhava para o telemóvel.
– Já bebeste o café? – perguntei.
De olhos no telemóvel, respondeu-me que não.
Acendi outro cigarro. A praia estendia-se à nossa frente.
– Júlia, não podes fazer isso na toalha? Bebe lá o café…
De olhos no telemóvel, ela bebeu o café. E disse:
– Vou à casa de banho.
E bamboleou os calções de ganga até à barraca debaixo de um pinheiro. Fixei um horizonte de para-sois. Corpos brilhantes debaixo do sol; suor a efluir, a dissipar-se na brisa e a fundir-se com o mar. Uma submissão aos elementos. Um fragmento do respeito pagão. Primordialismo flagrante num gordo que se arrastava para chegar à lancheira. O acalentar da vida. Uma lei. Uma lei imposta pelo sol, pelo calor: «Não fazer nada». Uma falsa passividade, no fundo; pelo menos para uns. Porque o mundo também vem de dentro. E a Júlia? A Júlia demorou-se na casa de banho. Foi cagar. Ou então não foi, mas levou o telemóvel e demorou-se. E quando chegou ao pé de mim, de cabelo a flutuar no vento e telemóvel na mão, disse-me:
– O pessoal quer fazer um jantar logo à noite.

A Júlia estendeu a toalha, encaixou-a na minha, extinguindo o pedaço de areia entre nós. Despiu os calções e despiu o top, esticou os braços por cima da cabeça. Deitou-se. Despi a t-shirt e deitei-me também. Olhámos em frente, olhámos para o mar.
– Quem é que vai ao jantar? – perguntei.
– Hum?
– Quem é que vai ao jantar?
– Ah!... O pessoal lá de casa e isso.
Passaram-me pela cabeça respostas, objecções.
– Vou dar um mergulho.
A água do Portinho era vítrea, sem ondas e fria. Gelada mesmo. Mas mergulhei. Bracejei para trás o horizonte desfocado e afastei-me das dunas. Afastei-me da Júlia. Rasguei o tecto do mar, virei-me para a praia: uma concha de areia, orlada por pinheiros e arribas; o berço da vida rastejante, do vertebrado que voltou ao mar para o encher de sereias. O mar não era só um azul estancado.
De costas viradas ao céu, a Júlia folheava O Príncipe. E eu, deitado ao lado dela, antecipava o momento em que ouviria um: «As pessoas são mesmo ridículas». Seria a conclusão d’O Príncipe. E para a Júlia também seria a minha. Era isso que nos unia, a redução da realidade aos ângulos feios. Chamávamos-lhe «realismo». E através dele, o mar era tão só um azul estancado.
– Júlia?
– Sim?
– Não quero ir ao teu jantar.
Não houve sequer um «porquê». A Júlia fechou o livro sem o marcar e levantou-se furiosa. Eu era pior do que toda a gente e ela precisava de mo dizer.
– Um cínico amargo, incapaz de gostar d’alguma coisa pra além de si próprio! Chamei-lhe «babe».
«Babe»?!
Não gostou. Soalhou-lhe a cobardia. A cobardia de um homem sozinho, que traz uma babe à praia para sentir que existe, uma babe que ele não respeita, com quem ele não fala, uma babe que ele tolera porque é uma babe.

As lágrimas da Júlia pronunciaram-se.
– E tu és a minha boleia, foda-se!
Levantei-me da toalha. Pousei as mãos nos ombros dela, devagarinho.
Babe
Empurrou-me. Deu passos furiosos até à mala, apanho-a, sacudiu-lhe a areia.
– Isto já não é nada – disse.
E afastou-se na direcção da água, fundindo-se com a turba à beira-mar.

Sozinho com um céu roxo e um ilhéu lá no fundo, acendi uma ganza e olhei para o ilhéu. Pensei num pequeno-almoço na varanda da Júlia, numa manhã na Almirante Reis, na 25 de Abril acobreada pelo sol do meio-dia, no blues entre Coina e Azeitão. Paragem súbita junto aos carvalhos. A Júlia… A Júlia de vestido branco, a correr entre os carvalhos. A sujar-se. A deitar-se na penumbra. A levantar o vestido e a abrir as pernas. Tão apertada. Tão quente. A gemer alto contra o meu ouvido. E o vento a ciciar entre as folhas quando me venho nela… Pensei na noite da Arrábida, e na lua a polvilhar ouro sobre as ondas. Beijamonos nas dunas, eu e a Júlia. A areia é vermelha. Ouvem-se as sereias na brisa. E entre as ondas douradas, arde um ilhéu em labaredas azuis. É de lá que cantam as sereias. É de lá que cantam para nós. E a Júlia, de cabeça encostada ao meu ombro: «Isto é bonito. É tão bonito».

Quando voltou à toalha, a Júlia pousou a mala e não disse mais nada. Arrumámos as coisas. Fomos embora. E eu fui àquele jantar. E não voltei a ver a Júlia depois disso.

/ Projetos individuais




Nuno Andrade 


Nuno Andrade parte da observação fotográfica de um conjunto de pessoas presentes na estrada nas imediações da sua habitação. Aproximando-se das suas histórias, dos seus hábitos e da forma como habitam “a sua estrada”, opera entre as noções de fotografia documental e mapeamento pessoal, transformando a estrada, espaço de passagem, sem memória, no palco da experiência e das relações entre estas pessoas.

André Fontes


No conto «A Invenção da Amnésia» o subjectivismo do narrador, António Fausto, funde-se com as paisagens de uma viagem de carro até à Arrábida. Num minimalismo cinemático, André Fontes traz-nos uma narrativa acerca da paisagem enquanto diálogo entre o subjectivismo e o mundo exterior.

Miguel Rodrigues


“Faz-se luz pelo processo de eliminação de sombras”.  Com a fotografia tanto se regista a luz com que se constrói uma realidade aparente do mundo, como, ao fixá-la, se transforma a presença num somatório de sombras não representáveis na sua realidade luminosa. Construindo imagens estáticas como mapas de sentido, como memória factual do mundo, a imagem interpõe-se entre o nosso processo de lá estar e essa memória, entre o que “isto foi” e o que isto pode ser.
Cosmogamia explora um terreno próximo da estrada nacional 10, atualmente em obras de requalificação paisagística para aí procurar vestígios dessas sombras irrepresentáveis, do que não chega a ser memória e reconstituir essa experiência a partir desses elementos.

Fernando Brito


Assente na produção de quatro peças audiovisuais correspondentes a quatro itinerários dentro da área balizada pela E.N.10, Fernando Brito centra-se nas tensões entre a representação e a experiência da paisagem. Nesse sentido é constituída uma hipótese a partir do carácter performativo do gesto humano, traduzido pelo acto de caminhar, como modalidade de leitura dessa paisagem a partir da sua inscrição no discurso fílmico. O pensador italiano Giorgio Agamben (1942) no seu texto Notas sobre o gesto (2002) sustenta que o gesto é uma acção infinita que se constitui entre a sua condição performativa no meio cinemático e a natureza performativa do próprio meio. Os gestos de atravessamento do território são pois, considerados como actions ou performances que servem de base para o desenvolvimento das quatro micronarrativas cinemáticas nas quais o autor propõe uma reflexão entre a gestualidade, o cinema e a representação da paisagem.



Alexandre
Alagôa


Alagoa parte de gravações field recording ao longo de caminhadas adjacentes à N10, desconstruindo-as por via de colagens, samples e explorações granulares aliadas à eletrónica ambiente, dando assim origem a uma nova paisagem sonora desvelada pela experiência repetitiva e diária do percurso pela estrada.

Renato Japi


Renato Japi reflete sobre a influência da visão na construção geográfica do espaço (Cosgrove, 2008), explorando através da escultura e da fotografia a forma como as noções de escala e perspetiva operam sobre a perceção do espaço e da arquitetura. Pela natureza do seu trabalho e pela forma como este é disposto nas salas em relação com os restantes trabalhos, as peças apresentadas por Renato Japi estarão sempre em diálogo com o trabalho dos restantes autores, promovendo, desta forma, uma relação de continuidade entre todos os trabalhos presentes neste projeto.




Casa d’Avenida


Inauguração 29 de Fevereiro



A primeira exposição do projeto teve lugar na Casa d’a Avenida, em Setúbal. Reúne trabalhos de Fernando Brito, Miguel Rodrigues, Nuno Andrade e Renato Japi.
Teve a particularidade de inaugurar em simultâneo com uma outra exposição, organizada pelo Museu da Paisagem, um projeto com quem A Invenção da Amnésia tem uma parceria.


Por força das restrições impostas pelo COVID19, a exposição, e os eventos programados no seu espaço até dia 29 de Março, data anunciada prevista para o seu encerramento, foram adiados.




As fotografias da exposição são de Fernando Brito.





Casa d’Avenida


Opening February



The first exhibition of the project took place

at Casa d’a Avenida, in Setúbal. It brings together works by Fernando Brito, Miguel Rodrigues, Nuno Andrade and Renato Japi.
It had the particularity of opening simultaneously with another exhibition, organized by the Museu da Paisagem, a project with which The Invention of Amnesia has a partnership.



Due to the restrictions imposed by COVID19, the exhibition, and the events scheduled in its space until March 29, the announced date scheduled for its closure, were postponed.



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